Friday, January 01, 2010
A vida é bem-aventurança
A azáfama das compras parece ter voltado, ainda que, possivelmente, por momentos. A crise era muito má, o pessoal ficou com medo e jogou à defesa, poupou, não comprou. A sensação parece ser a de que agora as coisas já não parecem tão mal como se faziam anteceder. O mundo não ruiu. Ainda estamos vivos, portanto, há que comprar, desfrutar, comemorar a vida que passa e que fica.
Estava tudo, muita gente, com as faces iluminadas. Sentia-se esperança e alegria no ar. Logo, a festança será de arrasar!
É bom observar esta alegria! O meu povo a sentir-se bem. Ricos e pobres (não é que eu aceite que tenha que haver pobres, antes pelo contrário). Até o rapaz cuja morada de todos os dias fica à porta do supermercado, um moço novo, inteligente, com algumas letras... mas totalmente virado do avesso pelo vício da droga, até ele, que ultimamente tenho visto a chorar àquela porta, estava de sorriso desfraldado, oferecendo-se jovialmente para levar carrinhos de compras aos porta-bagagens dos carros.
Meti-me na bicha longa, esperei enquanto gozava de toda aquela alegria no ar, paguei as minhas parcas compras de última hora (coisas para levar para a festinha em casa do irmão António) e saí para a chuva pesada que caía fora. Andei debaixo dela e do guarda-chuva até casa... parecia que voava (não, voava mesmo!) enquanto as palavras do Mestre me ecoavam sinfonicamente por dentro: "a vida é bem-aventurança"! Nunca é tarde para o descobrir. Bom Ano a Todos! 31 de Dezembro de 2009, 17h30.
The importance of the gap
Nirukt
The gap of the veda (that veda is)
Forward (Viakara) process of knowledge; and backward process of knowledge (Nirukta). São duas expressões. Marcha para a frente e marcha para trás.
Creation is from Atharva.
A memória é a parte mais importante.
Não esquecer a fonte, que é o objectivo de toda a marcha para a frente.
Yagya (Ya: perform Gya: conhecimento)
sama ved, yajur ved, atharva ved, rig ved
aknim
yoga is just sahmita, veda!
atharva ved knowledge
Excertos de MMY em vídeo
Wednesday, October 28, 2009
Karma ioga
Este silêncio, esta quietude é o centro de comando para a acção correcta espontânea. Dele brotam os pensamentos e destes, a acção. Aceder ao estado de consciência pura, de inteligência pura, de energia pura, de criatividade pura é aceder ao estado transcendental da consciência, que não muda, que está lá, sempre esteve lá e continuará a estar lá.
Cada onda que se ergue do mar, permanece mar sem deixar de ser onda. Ela é mais forte quanto mais mar extrair para se constituir como onda.
Cada pensamento, de igual modo, deve permanecer consciência pura, silenciosa do Ser e será tão mais forte quanto mais desta consciência contiver. A acção beneficia de pensamentos assim - torna-se naturalmente mais eficaz.
Este é o karma ioga da Meditação Transcendental - meditar para tornar a acção mais eficaz, mais correcta, mais poderosa.
Monday, October 26, 2009
Fernando Ventura, frade capuchinho
"Um inolvidável (muitas vezes inefável e tocante) momento de televisão."
Tuesday, June 16, 2009
O que é a Meditação Transcendental?

A Meditação Transcendental é uma técnica de meditação. A meditação não é religião, embora possa ser usada como prática espiritual nas várias religiões. Um exemplo: defender a vida humana não é religião, embora as religiões possam fazer essa defesa. Ou ainda, adoptar uma ou várias normas de comportamento não é religião, embora as religiões possam defender essas mesmas normas.
No caso da meditação, a situação é ainda mais clara. Trata-se de um processo psicofisiológico concreto. Dormir não é religião. Estar desperto não é religião. Sonhar não é religião. Meditar é adoptar um procedimento que dá acesso a um estado da mente/corpo, diferente do estar acordado, do dormir ou do sonhar, mas, ainda assim, um estado mental com uma correspondente fisiológica específica – um quarto estado de consciência. Este é o conhecimento da investigação mais moderna sobre o funcionamento da mente.
Meditação não é rezar, não é crer ou acreditar, não é pensamento positivo, não é uma moda new age. Para meditar não é necessário ter um deus, qualquer deus. Não é necessário uma igreja ou seita. Ateus, agnósticos ou crentes de qualquer fé podem meditar com o mesmo sucesso, e beneficiar dos efeitos positivos desta prática.
Meditação não é uma prática de grupo isolado, não impõe estilos nem rotinas específicas de vida, não exige mudança de convicções, nem é só para alguns ou para ascetas
Numa expressão curta, a meditação aquieta a mente. Diminui a actividade da mente. É um estado de simplicidade da mente. A mente quieta produz um corpo relaxado. Mente quieta, mas alerta, desperta. No sono profundo, a mente está quieta, mas não alerta – não há consciência. Na meditação, a mente está quieta, mas a consciência mantém-se, acentua-se, expande-se.
O objecto da meditação é a transcendência. Mas não devemos entender este termo como algo do domínio do misticismo ou do religioso. A transcendência pode e deve ser experimentada por todos, e existe, independentemente de qualquer religião. A transcendência é um estado da mente, da consciência. Não é uma crença. Não se trata de pensar na transcendência, desta ou daquela maneira. Por exemplo, pensar em Deus, no facto de ele ser transcendente, etc. Isso é mente activa, é mente envolvida no nível do pensamento, do intelecto. A Meditação Transcendental não é isso.
A Meditação Transcendental é uma técnica para permitir que a mente se recolha no seu próprio silêncio. Partindo do “barulho”, do “ruído”, dos pensamentos que assolam normalmente a mente, dos “turbilhões da mente”, para chegar à quietude, ao silêncio consciente, à paz interior, à serenidade do Ser. E o corpo aquieta-se quando a mente se aquieta. Ligado de forma indissociável à mente em repouso profundo, também o corpo obtém repouso profundo.
Esta meditação é um processo completamente natural, não envolve esforço. Trata-se apenas de criar o “ângulo correcto do mergulho”, que permite que a atenção mergulhe sem esforço, facilmente, e se dirija naturalmente para níveis sucessivamente mais agradávies da actividade da mente. Transcenda os aspectos mais concretos, mais superficiais, mais “barulhentos”, com mais significado intelectual, para atingir os níveis mais abstractos, mais indistintos, mais rarefeitos do pensamento e, mesmo, transcendendo este nível, chegar ao nível da transcendência plena, da consciência transcendental, em pleno silêncio, paz e bem-aventurança ilimitadas. É a técnica para isto. É uma técnica. Uma tecnologia da consciência para o conhecimento do Eu, do Ser, Atma. Uma viagem muito bela.
Tenho que admitir que alguém, na posse desta tecnologia, possa, a partir daí, criar uma religião. Digamos mesmo, que muitas das principais religiões se construíram sobre a posse ou domínio total ou parcial desta tecnologia. A Meditação Transcendental para todos permite que, se assim o quiser, alguém possa criar a sua própria religião. Ou não. Alguns de nós precisam de ter uma religião, outros não. Uns aprofundarão os fundamentos da religião que já têm, outros, por ventura, as suas próprias convicções filosóficas, culturais, etc. E outros poderão também, porque não, alterar essas convicções.
A Meditação Transcendental é, assim, uma técnica de libertação, para chegar à verdadeira liberdade, uma liberdade só possível se for baseada numa consciência plenamente expandida, na utilização plena dos 100 por cento do nosso potencial mental disponível, por oposição à utilização de apenas
Mais do que as religiões, nos nossos dias, quem deve usar esta tecnologia, são os estados, as diversas organizações sociais. O Governo é o espelho inocente da consciência colectiva da Nação. O chefe de um governo pensa, naturalmente, para si mesmo “o que posso fazer de melhor para o meu povo?” Melhorar a economia, melhorar os aspectos sociais, a saúde, etc., etc. Mas ele só pode fazer o que a consciência colectiva do seu povo permitir. Muitas vezes, ao mesmo tempo que entretém este pensamento, ele envolve o seu país em guerras, ou assina tratados de paz. Esta tem sido um pouco a história da humanidade. E isto acontece porque a consciência colectiva está manietada pelo stress individual dos cidadãos. Até há pouco tempo, o mundo não tinha descoberto, validado pela via do conhecimento científico, uma solução de base para os seus problemas ancestrais. A situação de hoje alterou-se. Os governantes têm agora ao seu dispor um vasto corpo de investigação científica que mostra como pode ser gerida a nossa sociedade, em paz, abundância e felicidade individual dos seus membros. Não usar este conhecimento pode ser considerado criminoso. E os cidadãos do futuro vão certamente responsabilizar os governantes por tão grave falha. De facto, como explicar a esses cidadãos que, havendo uma tecnologia disponível, que pode ser utilizada a qualquer momento e que produzirá efeitos a muito curto prazo (conforme mostra a investigação), na criação de uma sociedade livre e realizada, liberta de guerras, terrorismo, etc., alguém à frente de um governo, não use esse recurso imediatamente?
Portanto, como diriam os ingleses quanto à Meditação Transcendental, "what's in it for me?" O que tem qualquer pessoa, de qualquer estrato social, de qualquer proveniência geográfica e cultural, de qualquer sexo, de qualquer raça, de qualquer idade, de qualquer nível de conhecimento, de qualquer filiação religiosa ou filosófica, a ganhar com a prática da MT? Qual o retorno do investimento na aprendizagem e prática regular desta técnica de meditação, durante 20 minutos, duas vezes por dia? Onde está o ganho?
O ganho está na optimização da capacidade de perceber. De conhecer... ("conhece-te a ti próprio") a realidade essencial daquilo que somos como seres humanos e, conhecendo isso, conhecer tudo o resto que existe em redor. No entanto, este conhecimento não é de natureza intelectual, transcende a actividade da superfície da mente, é conhecimento do Ser. Ou, se quisermos, o Ser, como conhecimento. É cognição directa. É "Eureka!" É "Aha!" É uma associação íntima da percepção com a sua realidade essencial de consciência, de capacidade de conhecer.
A MT cria a condição na mente para que, de forma totalmente sem esforço, numa progressão natural na procura de campos de maior felicidade, a percepção marche em direcção à fonte do pensamento, aquele estado consciente donde são originados todos os pensamentos e que, em si mesmo, está quieto, sem excitação, em silêncio. Este é o campo de todas as possibilidades para a mente e para toda a vida que, uma vez experimentado, uma vez estimulado, aumenta o espectro de possibilidades de realização nas várias áreas da nossa vida. Tudo o que é bom para a mente aumenta com a experiência regular do Ser na Meditação Transcendental.
Mais calma e silêncio interior mesmo quando estamos envolvidos na actividade mais exigente, maior inteligência, maior capacidade de dar atenção e de, assim, não desperdiçar oportunidades de realização que vão surgindo na nossa vida, maior capacidade de concentração quer no estudo quer na prossecução de objectivos, maior independência de campo e maior invencibilidade face aos desafios exteriores, mais doçura de coração, maior capacidade de amar e de dar, mais capacidade para agir correctamente de forma espontânea evitando os erros que comprometem a nossa realização, a concretização dos nossos desejos, maior felicidade.
Thursday, February 12, 2009
Karl Marx
Será quevamos mesmo virar marxistas?... Isto quase parece uma professia de Nostradamus... mas é pura ciência económica posta debaixo do tapete pelos "money masters" e seus escravos mesmerizados pela miragem da ganância e do lucro fácil. Mas o azeite vem sempre à tona...
Agora é só necessário mudar o programa violento de transformação da sociedade para um novo e realmente revolucionário programa, a revolução permanente da Meditação Transcendental que começa por cada indivíduo aceder à energia criadora dentro de si e acabará por infectar o mundo inteiro de... Paz. Aquela percepção que nos escancara a realidade de que a Terra sempre esteve no Céu e de que o Céu sempre esteve na Terra. Aqui e agora. O fim da fome, da iliteracia, das doenças facilmente evitáveis, da injustiça, do terrorismo - o Céu na Terra. Este é o programa que descobri em Maharishi em 1978, quando percebi que a revolução que terminara há pouco tempo, não era, afinal, a verdadeira revolução. A verdadeira revolução é a revolução que nos enche da percepção permanente do Ser eterno, que é a memória da Totalidade.
Emanuel
Thursday, May 22, 2008
Viagem do Ser aos seus confins
a Santa Rita Pintor
Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
Ólho e contenta-me vêr,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Ha uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos comsigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
Que fôsse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,
Insensívelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que ágoas? E porque penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fumo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
Em divino extase revelador
Ás horas côr de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Ha sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos de vagar nas ágoas,
Quando o navio larga do porto!
Fluctuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar,
Virar cabos longínqùos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...
Ah, as praias longínqùas, os cais vistos de longe,
E depois as praias proximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Dêste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sôbre as ilhas longínqùas das costas deixadas passar,
Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um mêdo
– O mêdo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo –
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fôsse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer cousa,
Uma perturbação de afeições a que vaga patria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma ôca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr
Se soubesse como sê-lo...
A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação êle está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíqùo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que sáem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Supônho-me vendo-os duma praia deserta) –
Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida,
Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo –
Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu scismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquêle é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,
Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!
Sôa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia
E êle ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando – ai de mim! – os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.
Chamam por mim as ágoas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu
Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das ágoas,
A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínqùas, das travessias perigosas.
Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras cousas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras:
Ahó ò-ò ò-ò-ò-ò-ò ò-ò ---- yyyy...
Schooner ahò-ò-ò ò-ò-ò-ò ò-ò-ò-ò-ò-ò---- yyyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O extase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apêlo lançado ao meu sangue
Dum amôr passado, não sei onde, que volve
E ainda tem fôrça para me atraír e puxar,
Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psiquica
Da gente real com que vivo!
Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prá frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!...
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!
Pensando nisto – ó raiva! pensando nisto – ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convez!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eb!
Homens que vistes a Patagonia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fôsse nada,
Como se isso fôsse natural,
Como se a vida fôsse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh-lahô-lahô-laHO- lahá-á-á-à à!
Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fôstes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, errifim, a extraordinários portos!
Fugir comvôsco à civilisação!
Perder comvôsco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber comvôsco em mares do sul
Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir comvôsco, despir de mim – ah! põe-te daqui pra fora! –
O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções,
Meu mêdo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gosarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,
Sôbre convezes, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar prá Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a caír das cousas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínqùas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqùílos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente,
Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa vêrga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Marooned!
O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho ho and a bottle of rum!
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!
Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sôbre amuradas!
Cabeças de creanças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sôbre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ---- yyyy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ó-ó~ó-ó-ó---- yyyy...
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me comvôsco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes,
Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge prá loucura – essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo!
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heroes da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças
E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia!
Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem!
Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas,
Sêr-vos as vítimas – homens, mulheres, creanças, navios –,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia,
Não era só ser isto que eu queria ser – era mais que isto, o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne – fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convez onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
Fôsse uma célula consciente – e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
Fifteen men on the Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO---- lahá-á-ááá ---- ààà...
Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, prático à fôrça, sensível a tudo,
Pr'áqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Môços de esquina – todos nós o sômos – do humanitarismo moderno!
Estupôres de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis,
Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sôbre os convezes,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma!
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse
Arrastado – ó prazer, ó beijada dôr! –
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a~ar, isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Yeh-eh-eh-eh-eh eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh eh-eh! Tudo canta a gritar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-eh-eh-eh eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh eh-eh eh-eh-eh-eh!
Hé-lahô-lahô-la HO-O-O-ôô-lahá-á-á---ààà!
AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó Ó-Ó-Ó Ó Ó --- yyy!...
SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó ---- yyyy!...
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim.
Decresce sensívelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos...
Ahò ò-ò ò ò ò ò-ò ò ò ò---- yy...
Schooner ahò-ò-ò ò ò-ò-ò ò ò ò-ò-ò-ò---- yy .....
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescôr nocturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção
Que fôsse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa socegada, ao pé do rio...
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas.
Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto...
Uma inexplicavel ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquélas victimas – principalmente as crianças –
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas;
Terna e suave, porque não o fôram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui ha uns momentos!
Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acôrdo com esta emoção – o marulho das ágoas,
O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais...,
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longinquos, dum azul japonez,
As casas de Almada,
E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia.
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infancia ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas ágoas!...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim.
Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»:
Lá vai a Nau Catrinêta
Por sobre as ágoas do mar...
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela – e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada...
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada,
Seu pente de ouro na mão,
Seus cabelos penteava...
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tenue de confusas cousas na alma!
Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inuteis,
Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma...
Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on The Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria,
A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
Da chacina inutil de mulheres e de crianças,
Da tortura futil, e só para nos distrainnos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para vêrem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o
outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar
uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglez Jim Bams, com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras rí-ústeriosas dentro de mim, das pequenas cousas
De regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim...
Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso,
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e notumo, o sôpro fundo e confuso:
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô –yyy ......
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – – yyy ......
Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô – – – yy .........
Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo.
á não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higienica, forte, prática,
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida maritima moderna,
Toda limpeza, maquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado,
Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fôsse por leis naturais,
Nenhuma cousa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas
Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das maquinas veiu trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve –
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas especies!
Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses!
O olhar hamanitario dos faróis na distância da noite,
Ou o subito farol proximo na noite muito escura
(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!...
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio;
E o destino comercial dos grandes vapôres
Envaidece-me da minha epoca!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil
Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas,
E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame
amarelo,
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar.^
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se.
Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma
Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigôr comercial do principio e do fim das cartas:
Dear Sirs – Messieurs – Amigos e Snrs,
Yours faithfully –... nos salutations empressées...
Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo,
E tem ao fim um destino marítimo, um vapôr onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes –
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias.
Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os póros... Neste ar maritimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um misterio maritimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitorios duma mesma patria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas!
Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes – tantas especies dêles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se póde dar à vida,
Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria.
É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes,
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fôsse um navio francês,
Com um ar simpatico de proletario dos mares,
E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural.
Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer especie de deveres.
Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo causal, que me fizeste o favôr
De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t--t --- t ----t -----t ... )
O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapôr, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edificios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte....
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicirculo de não sei que emoção
No silencio comovido da minh'alma...
ÁLVARO DE CAMPOS,
Engenheiro.
Saturday, April 12, 2008
Thursday, June 28, 2007
Tao-te Ching

Tao-te Ching
de Lao Tzu:
Expressões da Consciência
Quando Maharishi ouviu esta definição que Lao Tzu dá da realidade, gostou em particular da expressão “na falta de um nome melhor, eu chamo-lhe Tao” - é uma expressão que mostra a experiência dessa realidade por parte de Lao Tzu, que é totalmente abrangedora, que inclui tudo, portanto está para além de qualquer nome, mas, dada a falta de um nome melhor, ele chama-lhe de Tao. Não foi só Lao Tzu na China antiga que exprimiu estes mesmos princípios que são desenvolvidos no Veda e na literatura Védica – também Confúcio, discípulo de Lao Tzu, descreve a mesma realidade, o “Um absoluto”. Confúncio diz: “portanto, a verdade absoluta é indestrutível, sendo indestrutível, é eterna, sendo eterna, é auto-existente, sendo auto-existente, é infinita, sendo infinita, é vasta e profunda, sendo vasta e profunda, é transcendental e inteligente; é por ser vasta e profunda que contém toda a existência.
Portanto, aqui temos os sábios da China descrevendo apenas a realidade de Atma, do Ser, e de Brahm, globalidade, totalidade, na qual tudo existe. A realidade do “Um absoluto”. O que isto nos invoca de novo é que, na verdade, os ensinamentos de todos os grandes sábios do mundo são literalmente idênticos. Podem ser expressos em línguas diferentes, o chinês, o aramaico ou o grego ou qualquer outra língua do mundo, mas eles são um e o mesmo no seu significado. Podem ser expressos de forma ligeiramente diferente, de acordo com a natureza do tempo ou com o quanto as pessoas são capazes de perceber e apreciar num dado tempo e local. Mas o ensinamento é apenas um em qualquer parte do mundo. Todos os grandes sábios, qualquer que tenha sido o seu ensinamento, se referem ao ponto essencial que é: “tem a experiência, adquire o nível do teu aspecto transcendental do Ser, o nível não manifestado da tua própria consciência – experimenta isso – essa é a mensagem fundamental de todos os sábios e profetas da raça humana. Lao Tzu, a este propósito, menciona o seguinte: “O mestre mantém a sua mente sempre em unidade com o Tao, e isso é o que o faz irradiar”. Também diz: “a pessoa superior aquieta a sua mente como o universo aquieta as estrelas no céu. Ao ligar a mente à sua origem subtil, ele acalma. Ao acalmar, ele expande-se naturalmente e, finalmente, a sua mente torna-se tão vasta e imensurável como o céu noturno.”
Portanto, para todos aqueles que praticam a Meditação Transcendental, estas palavras são bastante familiares. A mente acalmando-se na fonte do pensamento, até à sua origem , onde é infinitamente calma, perfeitamente silenciosa, e então, expandindo-se até à infinidade. Maharishi tem vindo a enfatizar a educação que não se baseia apenas em conhecimento intelectual e na aprendizagem de milhares de leis da natureza, uma por uma e memorizá-las e usá-las, mas a educação que dá ao estudante a experiência do Ser, de modo a que ele esteja desperto nessa realidade, naquele “Um absoluto”, que é a base de todas as leis da natureza e, portanto, do universo inteiro, e que ao funcionar a partir daí, dá aos estudantes a capacidade de viver uma vida que está sempre de acordo com a direcção evolutiva, tornando-os capazes de realizar qualquer coisa. Lao Tzu diz: “Sem ir para fora podes conhecer o mundo inteiro. Sem olhar pela janela, podes ver os caminhos do céu. Quanto mais longe fores, menos conheces. Assim o sábio, sabe sem viajar, vê sem olhar, trabalha sem fazer.
Dr. Beven Morris
Sunday, June 03, 2007
Do Conhecimento de Mim
do Ser que há em mim,
do Ser que há no conhecimento,
do Ser que há no conhecido,
do Ser que resta quando a mente está quieta
e do Ser que há na mente que se move,
do Ser que há na vida ,
do Ser que há na morte,
do Ser que se respira
do Ser que respira,
da respiração do Ser,
à procura do que está quieto em tudo o que se move,
do que se move no que está quieto,
da paz que está no Ser
e da guerra que está no Ser em paz,
da felicidade de estar no Ser sem o saber
e do saber do Ser que é feliz.
Em busca do conhecimento de mim,
encontro o Ser que nunca partiu
e nunca chegou,
o eu que está no Ser que o deserdou,
o pensamento que parte do Ser e
o pensamento que me afasta do Ser,
o sentimento que nasce do Ser
e o sentimento que me afasta do Ser,
e escapa-me o Ser que é o pensar
e o Ser que é o sentir
e o Ser que é... ser.
Procuro o Eu que é o Ser,
encontro o eu que é o ego,
procuro ....
o Ser que está no ego
e encontro o ego a ser Ser e ego,
a ser Ser como ego.
Encontro-o
nunca o perdi
estava nele e dormi
estava nele e sonhei
estava nele acordado
estava nele em viagem
pela ilusão.
Acordado, acordei
dormindo, acordei
sonhando, acordei
Estou
onde sempre estive
onde esteve tudo
onde tudo é
onde sou
Eu sou esse
tudo o que tu és
tudo
a totalidade
isto
Tudo isto
que está em mim
é tudo isto que está em ti
tudo o que é
sou o que é meu
e tudo é meu
tudo pertence-me
tudo está onde eu estou
e nada está onde eu não estou.
Nada, para além de mim resta
nada, para além de mim respira
nada, para além de mim pensa
nada sente
nada fala ou faz
nada é, para além de mim
E tudo isto sou eu
e eu estou a ser tudo isto
sem futuro nem passado
O meu presente é tudo o que há
o meu presente é todo o passado
o meu presente é todo o futuro
Tudo o que se move está na minha imobilidade
tudo o que muda está na minha imutabilidade
tudo o que é, foi ou será está na minha eternidade
tudo o que se localiza está na minha omnipresença
Estou no que se move
no que muda
no que é, foi ou será
no que está aqui e ali
Tudo está em mim
e eu estou em tudo
Tudo o que é imóvel contém a minha mobilidade
tudo o que é imutável contém a minha mudança
tudo o que é eterno contém o meu tempo
tudo o que é omnipresente contém a minha localização
Estou na mobilidade e na imobilidade
na mudança e na imutabilidade
no tempo e na eternidade
num local e em toda a parte
A mobilidade e imobilidade está em mim
a mudança e a imutabilidade está em mim
o tempo e a eternidade está em mim
o local e todo o espaço está em mim
Estou por fora e por dentro
de tudo
e tudo está dentro de mim
tudo o que está dentro sou eu
tudo o que está fora sou eu
Estou fora
e estou dentro
sou o fora
e sou o dentro
Tuesday, February 06, 2007
Quando começa a vida humana?
por Scott F. Gilbert
Esta nota pode gerar alguma controvérsia. Teve origem num boletim organizado por um grupo de acção política na nossa universidade. O boletim defendia que enquanto a filosofia e a religião podem ter diferentes opiniões sobre o momento em que a vida começa, a ciência não tem esses problemas. Os estudantes foram informados de que havia um acordo unânime entre os biólogos sobre o facto de o início da vida coincidir com a fertilização, e de que não existia nenhuma disputa sobre este tema na literatura científica. Para além de não passar de uma paródia da ciência (i.e., que os factos científicos são a verdade objectiva e que todos os cientistas concordam com o que tais factos significam), é errado. Eu analisei um amplo leque de posições científicas sobre quando é que a vida começa, e verifiquei que essas posições dependem do aspecto da vida que cada um privilegia na discussão. Eis a minha classificação esquemática sobre a definição do momento em que a vida humana começa. Outras haverá certamente.
-- A visão metabólica: Não há um ponto a partir do qual a vida começa. A célula do esperma e a célula do ovo são tão vivos como qualquer outro organismo.
-- A visão genética: Um novo indivíduo é criado durante a fertilização. É nesse momento que os genes dos dois progenitores se combinam para formar um indivíduo com propriedades únicas.
-- A visão embriológica: Nos humanos, a geminação univitelina pode ocorrer até aos 12 dias p.c. (post coitum). Uma tal geminação produz dois indivíduos com vidas distintas. Mesmo ligados ("Siameses") os gémeos podem ter personalidades diferentes. Assim, uma individualidade singular não é fixada antes do dia 12. (Em termos religiosos, os dois indivíduos têm duas almas). Alguns textos médicos consideram os estádios anteriores como "pré-embriónicos". Esta perspectiva é defendida por cientistas como Renfree (1982) e Grobstein (1988) e tem sido recomendada teologicamente por Ford (1988), Shannon and Wolter (1990), e McCormick (1991), entre outros. (Esta visão permitiria a contracepção, a "pílula do dia seguinte", e agentes contraceptivos, mas não o aborto depois das duas semanas.)
-- A visão neurológica: A nossa sociedade definiu a morte como a perda do padrão EEG (electroencefalograma) cerebral. Reciprocamente, alguns cientistas pensaram que a aquisição do EEG humano (por volta das 27 semanas) deveria ser definido como o momento em que a vida humana começa. Esta perspectiva tem sido avançada mais concretamente por Morowitz e Trefil (1992). (Esta perspectiva e as seguintes permitiriam a realização de abortos entre a 14ª e a 24ª semana de gestação).
-- A visão ecológica/tecnológica: Esta perspectiva vê o começo da vida humana no momento que a mesma pode subsistir fora do seu ambiente biológico maternal. O limite natural da viabilidade ocorre quando os pulmões ganham maturidade, mas os avanços científicos podem agora permitir a sobrevivência de bébés prematuros com cerca de 25 semanas de gestação. (Esta é a perspectiva actualmente dominante em vários estados norte-americanos. A partir do momento em que um feto possa ser potencialmente independente, não pode ser abortado.)
-- A visão imunológica: Esta perspectiva vê a vida humana como começando quando o organismo reconhece a distinção entre eu e não-eu. Nos humanos, isto ocorre por alturas do nascimento.
-- A visão psicológica integrada: Esta perspectiva vê a vida humana como tendo o seu início quando um indivíduo se tornou independente da mãe e tem o seu próprio sistema circulatório, o seu próprio sistema alimentar e o seu próprio sistema respiratório. Este é o tradicional dia de aniversário, i.e. quando o bébé nasce para o mundo e o seu cordão umbilical é cortado.
(tradução OAM)
Sunday, September 17, 2006
Fé e Razão
Racionalidade e fé são termos aparentemente contraditórios. Ou seja, a fé pertence ao domínio do irracional ou do pré-racional. Este casamento da fé com a racionalidade do questionamento filosófico e/ou teológico foi feliz porque ele é uma parte mais ampla do que a mera fé ou a mera racionalidade, a que podemos chamar consciência. No entanto, este casal não é o único habitante da casa da consciência. Esta - o conhecedor e o criador... de sentimentos e pensamentos - é mais do que a soma de todas as suas funcionalidades. Abrange mesmo a potencialidade ou possibilidade de conhecer, o Ser. Encontraremos assim, para além da fé e da razão, o crente e o conhecedor de coisas e de ideias - o sujeito que observa objectos.
Neste processo, podemos assim identificar um conhecedor ou sujeito (Rshi), um conhecido ou objecto (Devata)e, uma mecânica, um processo, que liga o sujeito ao objecto de conhecimento (Chandas).
Esta mecânica ou processo que liga o sujeito ao objecto do conhecimento pode ser de natureza racional ou intuitiva.
No entanto, quando o objecto de conhecimento passa a ser o sujeito conhecedor, dá-se uma unificação dos três elementos num só. O termo védico para esta unificação é Samhita. Quando o sujeito é conhecido pelo sujeito,todo o conhecimento é simultaneamente sujeito, objecto e processo. Esta seria a realidade da consciência que se conhece. O tal "Eu sou" - o Ser.
A vantagem de se aliar a fé à racionalidade está em identificar outro elemento da consciência , para além do da racionalidade, como essencial no processo de conhecer. Uma nova dimensão do conhecimento é ganha, que acrescenta ao intelecto o transcendente e que responde ao que aquele não é capaz. O intelecto é frio, lógico, discriminativo; na fé há calor, sentimento, totalidade. No Ser há razão, fé e intuição transmutada no silêncio da resposta que satisfaz totalmente o inquiridor. Satisfação, paz.
É assim que o cristianismo nos aparece como uma evolução em relação às formas de obter conhecimento ligadas às culturas que não fizeram vencimento na história. No entanto, o cristianismo, como cultura, está também em crise, na medida em que já não responde às necessidades de conhecimento dos dias de hoje. A racionalidade descobriu-o numa luta para impôr a sua superioridade que usa meios não condicentes com a moral. A fé descobriu-o como mais uma das possibilidades de Deus e desconcentrou-se.
Estamos na transição para a cultura em que a descoberta do "Eu que é" encontrará o homem cósmico usando toda a sua potencialidade cognitiva e criativa para finalmente criar e viver num mundo como o que todos imaginamos ser possível, de realização individual e colectiva, mas que o uso parcial do nosso potencial de consciência tem condenado persistementemente ao fracasso, até hoje. Só essa expansão cognitiva permitirá perceber o homem que somos, o planeta que somos, o sistema solar que somos, a galáxia que somos, o Uni-Verso que somos (destas duas vertentes - unidade e diversidade - passaremos a viver mais no paradigma da primeira, ao contrário do que acontece até hoje, onde o paradigma é o da segunda). Voltaremos ao que era antes e que nunca deixou de lá estar - o mais antigo, o primeiro, o uno; e de lá, poderemos voltar a criar mais e mais vezes, sem limite, toda a diversidade recreada no silêncio desta serena unidade.
Monday, April 10, 2006
A Era da Dignidade Humana
A técnica para experimentar naturalmente este estado de consciência foi arredada do processo educativo normal nas nossas sociedades. Mas este conhecimento tem existido desde sempre com o homem e tem sido especialmente mantido na tradição de mestres Védicos da antiga Índia.
Nos últimos 50 anos, Maharishi Mahesh Yogi tem dedicado toda a sua vida a divulgar e introduzir a Meditação Transcendental em todo o mundo - ela está agora disponível na maior parte dos países, como forma sistemática de experimentar diariamente, duas vezes por dia, este quarto estado de consciência.

O Ioga é o valor unificador do conhecimento védico, ou conhecimento total. O termo sânscrito Veda significa “o conhecimento” ou conhecimento total. Este conhecimento inclui três elementos fundamentais. Rishi (conecedor), Devata (o conhecido) e Chandas (o processo de conhecer). O conhecimento total é o conhecimento da unidade (samhita) destes três elementos – o Ser auto referente, absoluto e transcendental.
Tal como uma árvore se desenvolve a partir do vácuo existente no seio de uma semente, também todos os aspectos relativos da vida se desenvolvem a partir do Ser. O Ser imanifestado manifesta-se em todos os aspectos mutáveis da vida sem deixar de permanecer como Ser imutável e transcendental.
O Ioga proporciona o conhecimento do conhecedor, enquanto entidade que concentra em si a potencialidade plena de todos os aspectos que podem ser criados e conhecidos e, também, os aspectos que dizem respeito ao próprio processo do conhecimento.
A MT é a ferramenta que proporciona a experiência do Ser de forma sistemática, na rotina do dia a dia. Ao fecharmos os olhos para meditar, a mente inicia um processo de experiência que a conduz dos níveis da superfície em direcção aos seus níveis mais profundos e calmos, transcendendo sucessivamente aspectos mais refinados da actividade de pensar até chegar à experiência do nível que transcende (está para além) mesmo o aspecto mais refinado de todos do funcionamento da mente. Esse nível é o nível do Ser, em que a consciência é máxima mas em que já não é consciência de pensamentos, antes de si própria, da sua própria realidade silenciosa e transcendental, da sua própria natureza de bem-aventurança e plena satisfação. A mente individual ganha a qualidade de mente cósmica, ilimitada – Brahm, ou Ser. É no Ser que a mente adquire o seu estatuto cósmico e está totalmente satisfeita. E só uma mente totalmente satisfeita está totalmente em paz.
Só esta experiência regular da Consciência Transcendental confere pleno sentido à consciência dos aspectos relativos da existência. Ao meditarmos regularmente, 20 minutos de manhã e à tarde, estamos a fazer crescer em nós a consciência do Ser, tornando-o cada vez mais presente na consciência dos seus aspectos relativos e parcelares. Este é o processo de iluminação, que deve passar a constar de todos os curricula de ensino, como garante de uma nova era, a Era da Iluminação, em que iremos entrando na medida da nossa vontade de mudar o curso do mundo, de cada vez mais miséria, sofrimento, guerra e aniquilação, para cada vez mais abundância, felicidade e dignidade humana.
Tuesday, April 04, 2006
Sat Yuga

A fome e a miséria, o atraso no acesso aos benefícios do progresso científico e tecnológico, que afligem mais de metade da populaçao do mundo, bem como a infelicidade e a depressão experimentadas por grande parte da populaçao dos países considerados desenvolvidos, dão-nos a medida de como uma consciência pouco desenvolvida (parece haver unanimidade entre psicólogos de que a maioria das pessoas apenas consegue utilizar uma pequena parte do seu potencial mental) está a tornar o homem refém das suas próprias limitaçoes actuais. O terrorismo e a guerra, bem como a criminalidade são apenas a consequência mais visível e terrível desta realidade.
A introdução da Meditação Transcendental no ocidente, aliada à investigação científica que sobre esta técnica tem sido levada a cabo em inúmeras das principais universidades e institutos de investigaçao em todo o mundo, oferece-nos uma oportunidade única para entrarmos definitivamente numa nova era de conhecimento, com consequências inimagináveis para o verdadeiro e pleno desenvolvimento da raça humana. De facto, a investigação mostra que, com a prática regular da MT e de outras técnicas relacionadas, é possível ao homem aumentar a sua inteligência e a capacidade para usar plenamente o seu próprio potencial mental e, ao fazê-lo, expandir a consciência, transcendendo sucessivamente novas limitações.
Esse é o caminho para chegar à consciência do Ser que, antes mesmo de ser qualquer coisa em concreto do campo observável da vida, é ele mesmo, enquanto capacidade e plena potencialidade para ser tudo o resto. Essa realidade daquele que é, do que conhece, do sujeito no processo do conhecimento de objectos, é ela própria possível de ser conhecida, através do uso adequado da mente. E é quando o sujeito se conhece a ele próprio, quando o processo de conhecimento está unificado na consciencia que o sujeito tem de si próprio, que se abrem todas as possibilidades e potencialidades de realização humanas, de conhecimento de tudo o resto.
Esta capacidade de se conhecer a si mesmo e, dessa forma, conhecer tudo o resto, é o bem mais precioso desde sempre perseguido pelo homem. E é a era científica que está a permitir ganhar esta premência de conhecer o Ser, como forma de sair do beco sem saída a que nos levou a consideração de que o conhecimento verdadeiro é tão só o conhecimento "objectivo", ou dos objectos. Todo o conhecimento cai pela base quando o conhecedor é desconhecido. As teorias mais avançadas da física, que nos falam do campo unificado, um campo onde todos os outros campos estao incluidos, reconhecem agora que esse campo tem obrigtoriamente que incluir não só tudo aquilo que pode ser "objecto" do conhecimento, mas também... o próprio sujeito do conhecimento. Caso contrário, algo permaneceria no exterior - o observador, o conhecedor, o Ser.
O conhecimento do Ser é o conhecimento da base onde assenta tudo aquilo que é ou pode ser conhecido, todas as formas de obter conhecimento e, também, a totalidade do próprio conhecedor. A experiência desta totalidade de conhecimento é a experiência da bem- aventurança absoluta, da paz e da felicidade interior. É a realização do homem na sua unidade consigo mesmo e com o universo, o seu pleno potencial de homem pacífico e plenamente satisfeito.
Só este estado de realizaçao permite ao homem criar de facto o Céu na Terra, e entrar definitivamente numa nova era, a Era da Iluminaçao, Sat Yuga, onde não há lugar para o sofrimento e ignorância, onde os recursos disponíveis são suficientes para a satisfação de todos e onde o trabalho é tão somente uma forma de dignificação e realização do homem, onde não há lugar à exploração e agressão de fortes contra fracos e onde o espírito e alma humanos são definitivamente reconhecidos na sua verdadeira dignidade, que é a dignidade do próprio Criador.
Criar o Céu na Terra é fazer desabrochar em todo o seu esplendor a consciência do Céu, que está, realmente, sempre presente na nossa vida terrena.