A Propósito do Polémico Discurso do Papa numa Universidade da Alemanha
Racionalidade e fé são termos aparentemente contraditórios. Ou seja, a fé pertence ao domínio do irracional ou do pré-racional. Este casamento da fé com a racionalidade do questionamento filosófico e/ou teológico foi feliz porque ele é uma parte mais ampla do que a mera fé ou a mera racionalidade, a que podemos chamar consciência. No entanto, este casal não é o único habitante da casa da consciência. Esta - o conhecedor e o criador... de sentimentos e pensamentos - é mais do que a soma de todas as suas funcionalidades. Abrange mesmo a potencialidade ou possibilidade de conhecer, o Ser. Encontraremos assim, para além da fé e da razão, o crente e o conhecedor de coisas e de ideias - o sujeito que observa objectos.
Neste processo, podemos assim identificar um conhecedor ou sujeito (Rshi), um conhecido ou objecto (Devata)e, uma mecânica, um processo, que liga o sujeito ao objecto de conhecimento (Chandas).
Esta mecânica ou processo que liga o sujeito ao objecto do conhecimento pode ser de natureza racional ou intuitiva.
No entanto, quando o objecto de conhecimento passa a ser o sujeito conhecedor, dá-se uma unificação dos três elementos num só. O termo védico para esta unificação é Samhita. Quando o sujeito é conhecido pelo sujeito,todo o conhecimento é simultaneamente sujeito, objecto e processo. Esta seria a realidade da consciência que se conhece. O tal "Eu sou" - o Ser.
A vantagem de se aliar a fé à racionalidade está em identificar outro elemento da consciência , para além do da racionalidade, como essencial no processo de conhecer. Uma nova dimensão do conhecimento é ganha, que acrescenta ao intelecto o transcendente e que responde ao que aquele não é capaz. O intelecto é frio, lógico, discriminativo; na fé há calor, sentimento, totalidade. No Ser há razão, fé e intuição transmutada no silêncio da resposta que satisfaz totalmente o inquiridor. Satisfação, paz.
É assim que o cristianismo nos aparece como uma evolução em relação às formas de obter conhecimento ligadas às culturas que não fizeram vencimento na história. No entanto, o cristianismo, como cultura, está também em crise, na medida em que já não responde às necessidades de conhecimento dos dias de hoje. A racionalidade descobriu-o numa luta para impôr a sua superioridade que usa meios não condicentes com a moral. A fé descobriu-o como mais uma das possibilidades de Deus e desconcentrou-se.
Estamos na transição para a cultura em que a descoberta do "Eu que é" encontrará o homem cósmico usando toda a sua potencialidade cognitiva e criativa para finalmente criar e viver num mundo como o que todos imaginamos ser possível, de realização individual e colectiva, mas que o uso parcial do nosso potencial de consciência tem condenado persistementemente ao fracasso, até hoje. Só essa expansão cognitiva permitirá perceber o homem que somos, o planeta que somos, o sistema solar que somos, a galáxia que somos, o Uni-Verso que somos (destas duas vertentes - unidade e diversidade - passaremos a viver mais no paradigma da primeira, ao contrário do que acontece até hoje, onde o paradigma é o da segunda). Voltaremos ao que era antes e que nunca deixou de lá estar - o mais antigo, o primeiro, o uno; e de lá, poderemos voltar a criar mais e mais vezes, sem limite, toda a diversidade recreada no silêncio desta serena unidade.